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escada para o fundo

 ele sobe de escada. gosta das escadas, do esforço. gosto de sentir as coxas queimando. cada degrau são uns centímetros a mais na ascensão. você gosta da dor, do ar ficando cada vez mais longe, mais difícil de entrar nos pulmões. preciso sentir o fôlego longe, o peito vazio. as panturrilhas doendo, queimando, ardendo. a dor nos pés, nos quadríceps, na calça, nos sapatos, no abdômen. no peito. ele sente o ar ficando mais pesado e difícil de entrar. não entre mais, não entre. vamos sentir como se estivéssemos submersos, sem ar, sem possibilidade. os joelhos doem. como seria bom estar mergulhado, longe da superfície. cada movimento era um grilhão a ser puxado. é melhor ficar parado. era melhor estar afundando. no fundo o silêncio é maior. não ouvem mais nada. a cabeça arde. mas está subindo, e não descendo. poderia ter subido de elevador, mas as escadas estão sempre vazias. e silenciosas. nas escadas está frio, não há resquício da respiração de outros. nas escadas não tem alma, e se sente

Distância e outros líquidos

Distância é uma medida que é sempre abstraída de seu sentido maior. A ciência simplifica, transforma tudo em pontos e retas e pronto: temos a distância em metros, quilômetros ou milímetros. Mas as pessoas não são pontos. Cidades não são pontos. Continentes não são pontos. Acho que é por isso que temos dificuldade em lidar com a distância que as pessoas impõem, porque a gente cresce com essa noção simplista de distância. Ainda bem que estou estudando engenharia, pra ver a realidade material das coisas, sem facilitar. Tem que pensar muito pra entender. Eu me peguei pensando na medida de distância como volume, e não extensão. É bem mais real. Tem um metro cúbico entre eu e aquele lápis ali, se eu pensar no deslocamento de ar que será necessário para eu movimentar meu braço até o objeto. Melhor dizendo… 1,2557 m ³ . Acho que esse cálculo não tá certo. Eu não estou muito cocnenrtado nisso. Mas eu não posso pensar em outra coisa agora, porque eu sei aonde isso me levará. Pensar no cálcul

setembro

preciso ir ao mercado. não tenho o que beber em casa. também seria bom comprar algo pra comer. tem coisa na geladeira, mas tô com preguiça de cozinhar. não tem nada fácil pra comer. acabou o refrigerante, não tem mais fruta nem salgadinho. essa roupa tá suja. tem duas semanas que não lavo roupa. eu tomei meus remédios? que horas são? já passou da hora do remédio da manhã. deixa, vou pular, tomo amanhã no horário certo. acho que não tem mais. depois vejo. depois do mercado. vou a pé. não, vou de carro. tem gasolina. o tanque tá quase vazio, mas dá pra ir no mercado, é aqui do lado. o que eu vou escutar no caminho? não tô com vontade de ouvir nada. vou desligar o rádio. só quero silêncio. não ouço minha voz desde que acordei. não falei com ninguém. só recebi ligação de telemarketing. só atendo e desligo. não quero falar com eles. não quero falar. o que eu compro? vinho? não, tá caro. vou procurar uma cerveja barata. garrafa grande. salgadinho. um pacote grande. três garrafas. não, cinco.

Afogamento

Minha geração só faz se afogar. A quantidade de músicas, contos e livros sobre afogamentos é arrebatadora, assustadora. Nós nos afogamos em álcool, em curtição, em trabalho, em hormônios, em prazer, em velocidade e potência. Eu posso mais , parece ser esse o mote da noite, da galera. Pode mais álcool, pode mais drogas, pode mais alto, pode mais rápido. E pode mais tarde, pode trabalhar mais, pode afogar mais mágoas, pode se afogar mais, pode respirar mais assim. E pode mais. Pode mais, pode mais pode mais pede mais. Minha geração só não pede pra sentir mais. Porque não aguenta o tranco. Porque prefere se afogar a sentir um pouco mais. A sensação é bem-vinda porque é fugaz; já o sentimento, derradeiro e indelével, é evitado a todo custo. Minha geração o afoga de todas as formas, enchendo a pança e a cabeça com sensações pra que o sentimento fique ali enterrado(?), soterrado(?), naufragado(?), submerso(?), longe da atenção. Que atenção? Aquela que de tanto desviarmo-na do sentimento espa

Sem título mas com destino

...não, eu não sei. Não sei como começar esse texto porque não sei se tem começo. Eu acho que tô no meio dele já. E pode muito bem ser o fim. Esse negócio de começo, meio e fim não faz muito sentido agora. Ou ontem. Ou amanhã. É assim, é confuso mesmo. Quando a gente acha que tá entendendo, os referenciais mudam. L'idiome change. Je ne sais plus si je pense en anglais or if I'm speaking Portuguese. Não sei qual é a língua-mãe. Quando a gente tá junto, não sei de quem é a língua, não sei quem tá falando, se sou eu ou você. Eu sei que te amo. Eu sei que quero te dizer tudo. Eu sei que não quero dizer nada. É, é assim. Eu nunca estive tão sem chão e nunca me senti tão alicerçado. Eu não durmo mais em casa. Ou melhor, durmo sim – toda noite durmo ao seu lado, acordo com você me abraçando, acordo te beijando. Isso pra mim é o que melhor define casa pra mim, e não o lugar onde estão as roupas que eu chamo de minhas e a cama que supostamente me pertence. Eu acho que devo te dizer que

Perguntas

Como eu me tornei o que sou? Eu tenho um pai, uma mãe, um irmão. As coisas nunca foram perfeitas, ou pelo menos eu sempre percebi o lado ruim de tudo. Sou pessimista? Não, sou sensível. Estou sempre sentindo demais o que acontece à minha volta. Não consigo desligar. Não consigo fingir pra mim mesmo. Sou obstinado. Sempre tento fazer as coisas darem certo. Continuo tentando. Devo isso a mim e aos outros. Do contrário, teria desistido há muito tempo. Desistir nunca me pareceu ser a opção certa. Mas certa em que sentido? Não sei. Talvez "certa" no sentido do que sinto que os outros esperam de mim. Tento ser bom no que faço. Me dedico pra tal. Tento ser bom pras pessoas ao meu redor, minha família, meus amigos, as namoradas que tive. Sinto satisfação quando sinto que as outras pessoas estão felizes com algo que fiz por elas, pra elas. Por vezes isso me exigiu sacrifícios, que os fiz conscientemente, sem exigir nada em troca. Se exigisse, não seria bom. Achei que tinha encontrado

Montando o quebra-cabeças

É curioso que eu continue nessa busca ? Nem tanto. Eu tento entender. Entender porque uma pessoa é daquele jeito. Ainda que ela se apresente fechada aos meus esforços de entrar em seu mundo, de compreendê-la, isso me instiga a ser ainda mais sorrateiro e ladino, sempre buscando as peças que se encaixam na história que escrevo em minha imaginação. Eu meio que desisti de tentar entrar na fortaleza emocional que meu pai se tornou. Mas fui atrás de todas as peças. Qualquer pessoa que esbarra na resistência do outro em ceder cansa. Principalmente se a resistência é um modus operandi, se mesmo com tanto tempo de convivência ela não se sente à vontade para abrir prerrogativas pros outros perguntarem dela, perguntarem o que ela sente. Meu pai é sertanejo, ele se criou em meio a um ambiente hostil e a agruras que só ele sabe e não conta pra ninguém — como se, ao partilhar isso, ele desse a tudo isso uma importância ainda maior e fraquejasse. Ele tem que se manter forte, e é desse modo que ele f